Minha descida aos infernos – parte 2

Osorezan

Lembram de mim? Sou aquela pessoa que prometeu para vocês – há um século – a parte seguinte deste texto aqui… Eu poderia dar um monte de boas desculpas (que blogueiro nunca começou um texto se desculpando por sua ausência? Sério, gente dos blogs, precisamos fazer um hangout para falar sobre isso. Pelo direito de não escrever! Sem sentir culpa! E fora Temer!), mas não vou. Só vou dar uma desculpazinhazica: as perebas tiveram que ser curadas e isso levou um certo tempo. Você não vai aos infernos simplesmente à passeio. Você vai, resolve coisas, e volta. Mudado.

Sobre o Osorezan

A menos que você tenha um bloco de gelo no lugar do coração, não tem como não se sentir pelo menos um pouco emocionado nesse templo. Até aquele turista “não tô nem aí, só vim tirar uma selfie e falo alto se quiser” se comporta. Afinal, estamos na morada do Demo meu povo. E sentimos isso na pele nos cinco primeiros minutos da visita. Eu decidi passar rápido no templo principal pois estava curiosa para percorrer o circuito de caminhada infernal. Há uma cerca de bambu na saída do templo com uma passagem aberta. Sabia onde estava entrando, engoli em seco. Me decepcionei rápido, não encontrei o Cérbero. E até dei uma chamada discreta – aqui Totó, venha! – mas o bichinho não apareceu.

Tive então que me aventurar sozinha entre as pedras vulcânicas e o bafo. Esse último me acompanhou durante praticamente todo o percurso. O sol estava alto no céu e não havia uma nuvem sequer, mas o bafo vinha principalmente de baixo. Vinha do chão. Vinha dos montículos de pedras que soltavam fumaça.

Nem um pouco assustador.

Observei os montículos de perto pois imaginei que Cérbero estivesse se escondendo atrás deles. A maioria era natural, de origem vulcânica. Mas alguns, sem dúvida nenhuma, tinham sido fabricados por mãos humanas.

Sai no Kawara

Busquei informações no folheto que tinham me dado na entrada: o nome do lugar onde estava era Sai no Kawara. Reza a lenda que as crianças que morreram muito cedo renasciam nesse lugar.

Bem ali onde eu estava pisando.

Como elas não tiveram a oportunidade de agradecer aos pais por ter-lhes dado o dom da vida, elas constroem esses montinhos de pedra, como um tipo de oferenda aos genitores. Até aí, tudo bem. Criancinhas mortas fazendo montinhos de pedra. Só que nessa parte da história aparecem os demônios safados que destroem os montinhos.

Drama.

É aquele sofrimento, as criancinhas têm de construir tudo de novo. Mas não se preocupe, há um final feliz. Quando a noite cai, Jizo Bodhisattva – aquela estátua imponente do templo principal – sai para dar uma volta e esconde as crianças embaixo de suas roupas e os demônios ficam a ver navios. Ufa.

Tomei algumas decisões nesse exato momento: me divertir buscando o Cérbero, parar de ler o folheto explicativo e esquecer tudo sobre os demônios. Mas não deu. Por todo lado, você vê oferendas aos mortos, você vê pessoas rezando, você vê pessoas chorando (foi a primeira vez inclusive que vi um japonês chorar em público) e você vê os montinhos…

O ambiente convida ao recolhimento. Corações de gelo, ateus, agnósticos e religiosos se recolhem. Talvez seja essa a magia desse templo: unir as pessoas, independente de suas crenças.

Gokuraku-hama, a praia do Paraíso

O percurso é bem feito: você começa no bafo infernal, passa por vários lugares marcados simbolicamente – estátuas de buda, templo onde roupas dos finados são ofertadas, caminho onde os pais amarram uns palitinhos para fazer um tipo de armadilhas aos demônios (haha, bem feito demônio bobo), uma linda lagoa com vitória-régia dedicada às crianças que não nasceram – até você atingir a praia de areia branca do Paraíso.

De cair o queixo.

Ali chegando, teu coração está leve, é o momento de contemplação. Você pode sentar num banquinho, enfiar os pés na areia e observar o maravilhoso lago a sua frente. A água é cristalina e, por causa do enxofre, muda de cor em alguns lugares, indo do verde ao azul claro. Do outro lado do lago você observa a montanha do Paraíso e sua floresta densa.

Não sei quantas horas passei ali pensando na vida. Pude comprar água numa máquina de venda automática, dessas que tem em todas as esquinas no Japão, e até teve uma brisa leve para me refrescar. Só voltei para o centro de peregrinação pois o jantar era às 6:30. Em ponto. Atrasos não eram permitidos.

Silêncio na sala de jantar

Abri a porta do salão onde jantaria e fiz uma coisa horrível. Uma gafe daquelas. Falei boa noite para as duas pessoas que ali estavam.

Que me olharam com os olhos arregalados.

Que não me responderam.

Que só acenaram com a cabeça.

Me senti em Curitiba. Quando as duas últimas pessoas que dormiriam no templo entraram no salão e não cumprimentaram, entendi que o recolhimento continuava no interior do centro de peregrinação. Gostei do silêncio. Não falar é bom. As únicas palavras pronunciadas foram da reza budista, em forma de canto, antes e depois das refeições e algumas explicações dadas pelo monge.

A refeição foi vegetariana e frugal: apenas comer o necessário, nos disse o monge. Agradeci a mim mesma por ter trazido umas guloseimas escondidas no fundo da bolsa.

Precisamos falar sobre onsen

Normalmente é depois do banho que você começa a sentir a sapecada no ombro, as pernas inchadas e o corpo dolorido da caminhada. Só que eu já estava sentindo isso há horas. Desde o bafo infernal.

O ponto positivo é que eu sabia que os japoneses pensam em tudo. Sabia que o templo, que foi construído por volta do ano 800, era um espaço de purificação, conhecido na região, antes mesmo de ter-se tornado um lugar sagrado. Sabia que o povo ia tomar banho termal ali há séculos. Estava ansiosa, esperando por esse momento.

Vesti meu Yukata (tipo de kimono que você usa para ir aos onsen), tentei não pensar que Jizo estava passeando lá fora protegendo as criancinhas e fui nos dois primeiros onsen, que claro, se encontram dentro do templo, lá perto dos montinhos de pedra do Lucy. Não consegui relaxar direito – por que será? – e voltei para o mega onsen maravilhoso do centro de peregrinação.

Osorezan-2

Foi a primeira vez que me vi completamente sozinha em um onsen e fiz uma segunda coisa horrível. Que é proibido. Tirei umas fotos para mostrar para vocês.

Osorezan-3

Não me surpreende que os japoneses tenham usado esse local como espaço de purificação e de cura durante mais de um milênio! Depois de dois dias relaxando no onsen minhas perebas estavam cicatrizando e eu estava pronta para os três dias de trekking que vinham pela frente. Mas isso é uma outra história (que ainda conto para vocês).

 

 

 

Publicado por

Marcela Meirelles

2 blogs: - One photoblog in French: https://marcelameirellesphotoblog.com - One blog in Portuguese: https://essacoisadeescrever.com

4 comentários em “Minha descida aos infernos – parte 2”

  1. Oi. Ótimo texto. Mas apesar deproibido, deu uma de brazuca né? Ainda bem, pois gostaria de mais fotos. O tal do paraiso ficou apenas na imaginação. Bjs

    Em 29 de set de 2017 1:32 AM, “Essa coisa de escrever” escreveu:

    > Marcela Meirelles posted: ” Lembram de mim? Sou aquela pessoa que prometeu > para vocês – há um século – a parte seguinte deste texto aqui… Eu poderia > dar um monte de boas desculpas (que blogueiro nunca começou um texto se > desculpando por sua ausência? Sério, gente dos blogs, preci” >

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